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Luiz Anastácio

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Danças Rituais: Alimentar-se para Existir em Minhas Cicatrizes

Pensar um processo de criação em dança através de questões afrocentradas nunca é algo fácil, pois a todo o momento o corpo que propõe se aprofundar em suas significâncias ancestrais pretas está sendo atravessado por estruturas que se instauram através dos modelos hegemônicos na cultura, educação, arte, em tudo. Sendo assim, qualquer coisa que se tente produzir  visando não legitimar esses formatos e modelos hegemônicos em algum ponto será cruzado por eles e temos que ter gingado para lançá-los distante, para que não atrapalhem outras maneiras e formas de existir. 

O projeto Cicatrizes foi uma oportunidade de trabalhar esse gingado e observar que a forma de pensar e legitimar alguns léxicos na dança também pode ser uma trincheira. De um lado, uma lógica mercadológica ao pensar as produções e fazeres artísticos e de outro, formas de criação que permitem um aprofundamento, nas quais o tempo se faz necessário para conhecimento dos pontos que fazem sentido em um processo de  pesquisa em dança à partir do corpo preto. Nesse sentido, a pesquisa de dança proposta é através do pensamento das danças rituais, que se distancia das ideias moderna e contemporânea de conceber, já que são formas narcísicas e que contam uma única história em função do hoje, idealizadas para o corpo branco. 

Entender e compreender a ancestralidade como possibilidade de existência nas danças rituais, significa movimentar maneiras e profundidades ao propor uma pesquisa em dança afrocentrada. Quando um corpo preto está em cena seus antepassados estão sendo evocados, seja pela profundidade que é evocar as memórias resgatadas, seja pela subjetividade ao propor protagonizar em cena corpos pretos em um país racista como o nosso.

Trazer para cena cicatrizes em sua literalidade é quase um falso problema, pois é esse lugar que o corpo preto marcado está sendo exposto desde a desgraça afro-atlântica. O desafio é, portanto, propor outras narrativas e significâncias, pois muitas vezes a leitura que se concebe de um corpo preto em cena é revelada antecipadamente e reduzida aos signos sociais. Estes signos são aqueles que colocam o corpo preto enquanto propriedade a ser capturada  qualquer  que seja a proposição que venha através deste corpo, analisado sob a ótica de aprisionamento e/ou dominação.   

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Fotos: espetáculo Cicatrizes / acervo grupo ewé 

Por exemplo, ao analisar as imagens acima, registros do espetáculo Cicatrizes, várias leituras da semiologia da cena podem ser feitas considerando os elementos cênicos utilizados (objetos cênicos, ambiente, iluminação, figurino) e o fato de ser um corpo preto em cena. A cena nada mais é que uma exploração sonora e de movimento a partir de resgates da infância do bailarino Luiz Anastácio, que propõe mover sons com objetos que fizeram parte de sua infância. Porém, a cena não se finda na exploração da movimentação sonora, pois quando consideramos o olhar do outro sobre a cena ela toma diferentes contornos, pois o público que tem contato com o material cênico traz pensamentos já estabelecidos, em especial o  moderno, hegemônico em nossa sociedade. Este pensamento hegemônico delimita as percepções do público, pois é composto de formatos estabelecidos e formas de se relacionar com qualquer coisa, gerando um aprisionamento que colabora apenas para a manutenção desses formatos, afastando quem assiste de sua própria história e de uma relação própria com a cena. É este aprisionamento que, na grande maioria das vezes, objetifica o corpo preto e o enquadra como não sujeito. Por isso, imagens como essas acima podem trazer e permear aproximações com a cena a partir de algumas leituras que, até os dias de hoje, se fazem a respeito dos corpos pretos, como: ladrão, escravo, trabalho braçal, miserável, agressor, submisso, perigoso, explorado e por aí em diante.

A proposição das danças rituais vai para além de pensar na produção e estética do movimento, sendo também fundamental que o próprio público se responsabilize ao propor outras formas de se relacionar com as cenas. Se continuarmos a nos relacionar com os materiais artísticos sempre da mesma maneira, jamais iremos superar as  narrativas e possibilidades limitadoras do pensamento moderno. Tal afirmação, apesar de simples, não é, principalmente em uma sociedade que foi educada pela e para a diferenciação hierárquica entre os corpos. É preciso se reinventar e se reeducar. O momento de contato entre artistas e público deve ir além de formalidades pré estabelecidas e configurar-se de forma a permitir um maior aprofundamento, onde ambas as partes têm responsabilidades equivalentes. 

Como seria ver o registro abaixo com outras leituras? Conseguimos possibilitar formas variadas de análise que não as convencionadas sobre a relação entre esses corpos? Podemos possibilitar  outras narrativas quando a ação da cena está em  relação e em composição com um corpo não negro e de outro gênero?

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Foto: Ensaio para o espetáculo Cicatrizes, antes da pandemia /acervo grupo ewé 

A cena acima pode ser interpretada por cada pessoa de forma literal, pois é um homem mascarado com a mão no pescoço e tapando a boca e o nariz de uma mulher. Sim literal, porém as arestas que não podem ser lidas nessa imagem é o que ocasionou a movimentação. Neste exercício com o carvão, era proposto que o pó do carvão tomasse a cena, o que não pode ser visto na captura da fotografia, mas pode ser visto em nossas peles. Eu era a única pessoa que estava protegida para não inalar o pó do carvão e nesse momento, protegia as vias respiratórias para que a bailarina também não o inalasse, tirando-a da fumaça de carvão. Outras leituras são percebidas quando os corpos pretos estão juntos em composição, como podemos ver abaixo.

 

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Fotos: espetáculo ensaio Cicatrizes, antes da pandemia /acervo grupo ewé 

Estar protegido com a máscara em conjunto pode trazer leituras distintas quando comparado a momentos sem a máscara manipulando o corpo do outro. São esses diferentes olhares, aparentemente óbvios e tão naturalizados sobre cada imagem, que problematizo em minhas cicatrizes. A leitura da cena não é apenas uma questão de ação e reação, mas também aquilo que já espero e determino enquanto público ao me relacionar com um trabalho artístico o que resulta, muitas vezes, na desconsideração de outras formas de se alimentar com o material artístico. O pensamento hegemônico que se instaura não pode ser o ponto de partida exclusivo para se debruçar e entrar em contato com uma material afrocentrado. Quando isto ocorre, temos no público uma gama de pessoas emocionadas, mas que não conseguem, nem se tentarem, se relacionar com o material proposto. 

 

Ser Herói é Compreender Minha Grandeza 

Pode parecer utópico ou sonhoso utilizar a figura de um herói para propor uma criação em dança, pois que assim seja. Não partimos de uma lógica hegemônica do que é ser herói, concebemos outras formas de existir. Sendo assim, não vou ficar me justificando e vou direto ao ponto. Entender-me como um herói é compreender a força que não resvala e, ao mesmo tempo, propicia, através de mim, a emergência de outras existências percorridas  e que me antecedem. Pensar em um herói preto é compreender a imensidão do significado que é sobreviver em meio a extermínios contínuos e incessantes; é notar os super poderes que os povos pretos tiveram e desenvolveram para minimizar estruturas de aniquilação. 

É nessa grandeza de continuidade que entendo meu corpo como sagrado, por saber que nele carrego superpoderes de existências que tornam-me um super herói. Super herói humanizado que aproxima-se para entender os grandes movimentos e frentes que o povo preto gerou, sem romantizar os fatos, mas assegurar-me que, ao mesmo tempo que tenho superpoderes, me torno fraco ao negligenciar as estruturas com as quais me me deparo para continuar a existir e propagar novas existências. 

No projeto cicatrizes meu super herói é tudo aquilo que, de certa forma, consigo me conectar e retomar através de minhas lembranças não apagadas. É um tratado sobre poder ser um pouco de cada grandeza que me atravessa, seja na figura física, na sensação, nas cores, nas histórias, nas texturas. É sobre produzir dramaturgias em dança a partir de tudo aquilo que me move e, através delas, ressignificar outras possibilidades de existir com elas e para elas. Na cena, posso ser a metamorfose ambulante de uma busca incessante e cíclica sobre minhas histórias. Minhas, porque através de mim trago o transe que é poder existir em ancestralidade. 

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Fotos: espetáculo Cicatrizes/ acervo grupo ewé 

A imagem do herói visa, esteticamente, não se relacionar com quaisquer imagens degradantes relacionadas ao físico do corpo preto. Pelo contrário, através do afrofuturismo,  são evidenciadas as rugosidades das diferentes épocas que habitam o corpo na dança, seja ao revisitar suas memórias, seja ao torná-las visíveis na cena,  impulsionando-as  para uma projeção.  Meu herói é a pele preta em atividade que se revela na luz negra da cena. A luz negra que evidencia importâncias e particularidades antes não percebidas no geral. São essas importâncias, destacadas pela luz negra, que compõem as junções dos acontecimentos que formam o todo.

Estar na luz negra não é uma redundância de sobreposições conceituais, mas uma compreensão para entendermos a estética da cena: o que queremos revelar? Quais são os focos a serem observados? O que se pode ver? O herói preto é aquele que consegue se camuflar e compreender que, no gingado da vida, nem tudo pode ser revelado, que a exposição demasiada pode torná-lo presa, devendo, portanto, proteger suas particularidades do todo. Na luz negra, não trabalhamos com a neutralidade e sim com a beligerância, com  o combate, através dos quais podemos trabalhar nossas identidades e auto definições, evocando nossos particípios ancestrais.

A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico, sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA, 1994, p.177-178). 

 

Fotos: espetáculo Cicatrizes/ acervo grupo ewé 

É no poder SER, que evocamos Aqualtunes, Dandaras, Acotirenes, Nazambis, Benguelas e tantas outras pretas e pretos que aqui estiveram antes. Nos tornamos pontuais e altivos em nossas escolhas, denunciando, projetando e sendo pessoas que, de forma escancarada através de nossas danças  sob o foco da luz negra, se movimentam para combater as estruturas que não nos alimentam e findam nossas existências.  O herói para nossos corpos não é um mito e sim a realidade que perpetua em nossas existências. Quando nossa história pega fogo, consequentemente, morremos com ela. 

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Fotos: espetáculo Cicatrizes/ acervo grupo ewé 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MUNANGA, Kabengele.Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil.In: SPINK, Mary Jane Paris (Org.) A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994, p. 177-187.

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