
Mia França

1
Dançando não tenho linearidade
Morro, concebo, desenvolvo, nasço, e morro…
Foi difícil perceber que a cada giro,
que a cada deslocamento em que desejo avançar.
Posso estar retornando para algo que já tivesse me desprendido, ou me prendido.
Psicanalistas dizem que toda repetição precede a necessidade de elaboração,
Mas, e se meu movimento existir para não ser concluído?
Fodam-se os psicanalistas !!! (rs)
Não quero ter fim, não quero ter o TEU FIM
Se meu corpo quando titubeia entre um movimento e outro
Não deseja um fim,
deseja simplesmente ser e existir
ter desejo de travessias, de me disponibilizar ao outro,
desejo de encontros
de sentir e perceber esse mundo quântico quando danço, quando nascem os encontros
Quero fermentar por dentro, explodir e nutrir qualquer possibilidade de criação.
Não me importando com o que vai nascer
mas, ao mesmo tempo,
assumindo o que é meu
o que é nosso!
2
Quando danço o meu nascer
ele se inicia na infância
desço e caminho pelas ruas de manhã e tarde,
me movimento através das minhas primeiras relações sociais não institucionalizadas,
abraço as primeiras pessoas que conheci brincando fora de casa.
me agarro nas brincadeiras.
Ajoelho com a missa e as velhas que tocavam violão e pandeiro na pastoral,
me aqueço com o pão no forno comunitário,
suando como as folhas de almeirão da horta comunitária.
Entrego meu peso para os sonhos comunitários,
chão, barro, pé sujo.
Sigo saltitando entre pedras e caminho com as dores compartilhadas.
Sempre traçando meu sentido com os pés abaixo das saias de cetim das iabas sentadas.
Balanço forte com a corda e com o boi de tambor,
tenciono minhas coxas, delas vem a força
para me manter firme.
Sem cair,
para quando levantar,
girar rápido com a violência ouvida como fábula,
em um grupo de moleques que falavam,
sobre a morte do vizinho lá na escada.
O futuro lhe empurra como uma promessa de algo ruim que te esperava.
Mas amadureço,
danço ruas na noite,
Menina. Mulher.
Os grandes tropeços,
os enfrentamentos, as escolhas, as opressões.
Flexionar com as violências concretas, a violência como tábula rasa.
Ponto de partida e referência, loopings de movimento.
A repetição não para.
Os preconceitos, as amizades com homens, as amizades com mulheres,
amigues pretxs.
As amigas viadas,
mulher macho sim sinhô.
O acolhimento, a casa do Lark.
A casa da rua.
Lar para os excluídos,
ao abaixar meus seios se tornam abrigo.
O teatro, a dança, os abusos, o contato com o centro.
Com as diferenças.
o Mundo não é todo favela
Caminhando em calçadas retas.
deslizando em Ruas limpas.
As pessoas não olhavam quando uma viatura passava,
e nem tinham medo dela dar ré.
Como não se impressionar?
Dançando enquanto morro,
toco na mão do morto que visitávamos nas casas dos vizinhos em funerais com a molecada, por respeito, desafio ou obrigação.
Sem saber quem era o morto, sem saber o que era a morte.
Ali nasceu uma sensação em relação ao fim que me acompanha até hoje,
A religiosidade.
O terreiro na rua de trás, as muzenzas
Vendendo bala.
Cicatrizes,
Laroye, adorai as almas!
Impressão de fim de vida,
impressão de fim de ciclo.
Expressão.
Bebida.
Transição.
Deslocamentos no espaço com povos estranhos.
O mundo é maior que a minha rua.
O mundo é a soma de outras ruas.
O mundo não é a minha dor.
Talvez seja a soma de muitos corpos
Talvez mortos.
Talvez em torpor.
A pausa súbita após correr.
A Sensação de ter começado atrasado.
De ter sido apartado.
Separado.
Minutos depois a dor passa.
Estar morto não dói.
Fechar.
Parar.
Perder-se na dor,
morrer no orgasmo.
Pés formigando, sangue correndo…
Perde-se na soma da dor
Encontrar-se com outro corpo.
Que dança.
Uma parte de mim morre na relação
com o outro
Algo me alcança.
Algo Morre
Algo nasce.
Algo dialético,
indefinido.
Descalço descasco,
como as peles da cobra,
cada casca uma morte diferente,
para cada casca um fantasma,
para cada fantasma uma demolição.
O branco da pele seca,
a branca, a branquitude, o colonialismo, as vidas ceifadas, a herança branca.
O privilégio branco,
deparar-se com seu duplo morto,
porém muito vivo.
Corpos contorcendo, me entrego.
Cascas saindo,
Cascas caindo,
branca cobra alva.
Ouroboros que deveria ser interrompido.
Para recomeçar,
conceber o novo
pulsando com a sensação de reverberação.
Como dentro barriga quando a criança se move,
sinto a fluidez no movimento.
O ar me abraçando,
como a ideia ainda não concretizada.
O desejo de se mover correndo pelo seu corpo pausado
esperando
esperando
esperando
A identidade não ser politizada
e a cicatriz por fim ser regenerada.
Ressignificada.
2-
Como dançar com o outro
Enquanto você tenta reivindicar seu próprio corpo?
Você foi tomado
Ele também foi tomado
Nesse resgate louco e mútuo
Cada um dança no seu quadrado.
Porra que mundo difícil cheio das pestes!
Eu só queria dançar
Me humanizar
Seguir pelo caminho não traçado
Humanizar
Respeitar,
Admirar,
apreciar quem dança ao lado.
Criar encontros,
respeitar desencontros
Brigar com a porra da semiótica
E não com quem está ao lado
Enquanto alguns devoram,
eu cuspo.
E na saliva que me hidrata
Procuro pensar em minha dança
Na pedagogia da encrenca encarnada.
No outro distante
Que se esconde no impalpável das relações
Tento encontrar um mote
Algo que de suporte
Para uma dança pausada no tempo
Entre o enegrecer do carvão
E a queda do copos e pratos.
3
Não tenho heróis
Nem heroínas,
Todos morreram
Foram entregues com a cabeça no prato
Fazendo o que eu mais queria...
E isso não tem nada a ver com a porra do Cazuza
E sim com a rua.
Com o povo da rua
Então, enquanto danço e danço,
me agarro nos que por algum motivo
conseguiram viver,
E, de certa forma
Tento mostrar com e por sua força,
como se faz para sobreviver.
Sem passar por cima de ninguém.
É com eles que aprendo
É com aqueles que me desamarro
É onde giro e rodopio
Com minha saia de pano de prato
Encardida e toda adornada
Carregando na cintura
Uma moringa d’agua.
4 –
E na moringa d’agua preciso ferver,
elevar a temperatura, escorrer, transbordar.
Ao elevar a temperatura, meu corpo aquece, a respiração é meu combustível.
Contraio, expando, dilato, me desloco, ocupo o espaço.
Lembro da luz que emana do fogo e me entrego em brasas.
Meus braços e pernas movem os caldos, guisados, angus, suavemente enquanto sinto seu volume crescer, engrossar conforme eleva a temperatura e quando necessário eles também batem...
Sovam a massa pesada com força e persistência
Cortam
Com as mãos divide em pedaços
Partilha
Escolhe
Sente os grânulos e amassa
A sensação define a intensidade
A força
Sentir o necessário
Meu quadril torna-se bacia
Carrega miúdos
Nutridos de ejè
Quente
5
Sem nome
Aquilo que não tem nome, nem lugar
procura desmerecer o dito
desestruturar o feito
empenha-se em desqualificar.
Em cada canto da casa varrido
com cuidado e com primor
aprendido com mamãe
ou com a Dona Conceição.
Se deixar ele encostar
Torna-se apenas dor
simples trabalho doméstico
que por falta de opção
se oferece em troca de moedas
para comprar refeição.
Perde-se o como pegar,
por onde começar,
perde-se o sentido
perde-se o quando passar.
Anula a dança, o varrer,
o limpar, o brincar.
Aquilo que não tem nome, nem lugar.
Não percebe
apenas consome.
Não aprende
e nunca some!
Fica sempre lá.
Esgueirando,
se infiltrando,
das suas crenças se alimentando
suas certezas minando.
As histórias anulando
Os saberes desestruturando
Para aquilo que não tem nome, nem lugar
só ele sabe.
Ninguém mais entende
e se caso você questionar,
válido e universal
ele te silenciará.
Silenciará teu corpo
Sua história
Seu chão
(Negação ontológica!)
Assim ele vem
disforme
desinteressado
sem pertencer a lugar algum…
Aquilo que não tem nome, nem lugar
lhe desestrutura, se estrutura!
E assim ele segue
se você não se firmar
se não se apoiar…
6
Limpar, varrer, esfregar, torcer.
Aprender o sujo reconhecer.
Quarar o branco, secar o molhado,
limpar para acalmar.
Molhar o seco, reconhecer o limpo,
encontrar o limpo no “sujo” e o sujo no “limpo”.
Lavar, enxaguar,
deixar a água correr,
deixar ir o que não precisa ficar.
Aprender a se limpar,
folha, água,
limpar para esfriar,
banho, banhar, banhar-se,
a partir das trocas dar manutenção para a vida,
Omi Tutu, água que lava a pedra,
água que define a pedra,
água lava o corpo,
água que define o corpo,
limpeza que define a alma,
limpar como manutenção da vida,
limpar para receber, limpar para estar,
limpar para nós,
limpar para ELES.
7
Tudo come
Os deuses comem
ouvidos comem a moeda come olhos comem
O rio come
a cabeça come
a boca come
a faca come
o animal come
o sangue come, a pele come
a pedra come
a terra come
Tudo come
O que se come? o que se coloca?
qual é o bom alimento
definir o mundo a partir do que
se come
8- Kala
Não é a primeira vez que, ao dançar, reflito sobre o lugar e responsabilidade de pessoas brancas em cena. Nas outras vezes, em outros grupos não tive abertura para a possibilidade dessa discussão, e isso, de certa forma, deve ser contemplado. Pensar neste corpo que dança juntos aos corpos pretos implica em compreender na/ pela carne as verdades que o mundo branco não deseja tocar.
Dançando, em cada segundo que passa, em cada toque, em cada movimento convergente ou divergente, as tensões ocupam uma potência que por vezes me levam a paralisia, não por fuga, por isenção…Mas como momento de reorganização deste corpo que não deseja atravessar o outro, mas alcançar, se dispor, estar para o outro para uma criação coletiva, para aprender, criar saberes dançantes.
Todos nós carregamos nossas cicatrizes, cada uma possui a sua forma de ser tocada. Respeito a cicatriz do outro, cada dor, cada vivência, cada aproximação, cada distanciamento, cada aproximação, tudo isso me faz dançar e dançando penso em que lugares nos aproximamos ou nos afastamos.
Dançar a tensão.
Como dançar/tocar o corpo do parceiro de grupo em cena quando todo este ranço estrutural opera por você e reverbera nele? Ainda não existem relações pré-existentes de confiança, afetos, apenas epidermes que carregam significados sociais que a todo tempo x tempo lutamos para ressignificar e desmantelar.
Mas a essência, ou melhor, a essencialização, o racismo, nesse caso precede a existência. Bora lutar enquanto se dança.